No tempo em que os olhos até comiam, por Augusto Gil

Já lá vão alguns anecos mas não tantos para recordarmos muitas coisas que deixamos de ver e fazer no nosso dia-a-dia, mas sem dúvida que muitas vezes comentamos que fulano ou beltrano que já não está entre nós viesse agora cá, tínhamos a certeza que morria outra vez. Pensei em trazer nestas crónicas a muitos do que havia por aqui de histórias e já lá vai uma boa carrada de anos que as tivemos e com elas ou mesmo sem as ter fomos obrigados a ser utilizadas por nós e muitas vezes sujeitarmos a “elas” como…”Ter de dar satisfações”, mas muita gente não ia nessa como quem diz…Fazer o ninho atrás da orelha? Nunca, quem quer quer…cheira e deixa, ou mete-te na tu vida que tens muito um dia que contar.

Sou do tempo em que ainda se faziam visitas a casa de pessoas amigas rente à noite no Verão. Lembro-me de minha mãe falar disso mas nunca mandar-me tomar banho porque a família toda iria visitar algum conhecido. Nunca Íamos e isto porquê…o feitio “d`Dela”, péssimo, para dar um exemplo, chegou a não falar com a vizinhança toda que tinha na Rua de Alpiarça, mas sei como era porque tinha vizinhos que o faziam e tinha pena, sempre era uma maneira de sair de casa onde por vezes era como uma prisão. E era mais ou menos assim:O pior era a noite, com a falta de luz. Havia apenas uma candeia de petróleo que se levava no caso de haver lua nova ou a noite ser muito escura, e até era frequente irem contra as pessoas. Apanhavam cada susto. Ninguém avisava de nada, o costume era chegar de para quedas mesmo. E os donos da casa recebiam alegres a visita. Aos poucos, os vizinhos iam-se cumprimentando, um por um: – Olha o compadre aqui, Ó repá…Cumprimenta a comadre. E o garoto apertava a mão do compadre, da comadre e dos restantes que por lá estivessem com um sorriso de orelha a orelha. Aí chegava outro menino da casa. Repetia-se toda a diplomacia, e até os salamaleques mais peineirosos vistos no cinema pelos artistas que eram ali copiados e davam azo a umas boas gargalhadas; – Vamos masé nos assentar, ó gente….na tava nada á espera de Vócêses, que surpresa agradável, c´um catano.

A conversa rolava solta na sala agora improvisada onde minutos antes tinha sido a cozinha. Os compadres e as comadres lá começavam na conversa onde os homens apontavam para o trabalho do campo e as mulheres a costura e os tachos da cozinha. A rapaziada mais nova ficava “assentada” todos num mesmo banco comprido ou mesmo no chão, entreolhando e olhando o telhado de telha vã do tal compadre onde a vizinhança não incomodava nada os residentes. Falo de uns ratitos ou mesmo uns “Bisoiros” que andavam rente às telhas e nas paredes uns Retratos, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro…bem eram casas singelas e acolhedoras. Havia de facto, como reza a história pessoas convictas do Cristianismo, mas não crentes, para mais, depois do terramoto que destruiu a Igreja do Espírito Santo, hoje antigas as Escolas Velhas, a população aqui em Almeirim e em demais lugares deixaram um pouco a famosa convicção de curvar perante os altares mas trabalhar e ter em casa o seu Santinho Padroeiro que num sitio mais apropriado lá em casa era colocado no quarto ou noutra dependência e à noite convictamente as orações eram feitas. Não podemos criticar o que era de facto feito na altura e isto porquê? As migrações trouxeram muitos que divinamente de outros lugares, tinham como padroeiros os seus Santos de nascença das suas origens oriundas: vejamos, quem vinha do norte, desde o São Gonçalo, Tiago, Almortão, Eustáquio que publicamente foi apelidado de Esticado aqui bem perto, Alpiarça, Stª. Marta, João Baptista, e até para mim um que escolhi por ser o meu Santo proferido e de alguns estudantes o Santo Falhado de muitos e o Stº “Cábulas”.Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras. Tão acolhedora que era também costume servir um bom café aos visitantes. Como um anjo benfazejo, surgia alguém geralmente uma das filhas que dizia: -Ó pessoal venham práqui que o café das velhas tá na mesa. Tratava-se de uma metonímica gastronómica. O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite… tudo sobre a mesa…mas para o Compadre havia uma garrafita d´augardente. Juntava todo mundo e as piadas picavam. As gargalhadas também. P´ra quê televisão? Não havia…P´ra quê rua? Não havia luz… P´ra quê droga?….nem se sabia o que era… A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança. Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabaram. Era a vida transbordando simplicidade, alegria e amizade…Quando saíam, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos a esquina. Ainda os acenavam. E voltavam para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura e pela amizade. Era assim também lá em casa que gostava que tal acontecesse…Receber visitas com o coração em festa.O tempo passou e me formei um pouco em solidão hoje. Tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, e-mail… Cada um na sua e ninguém na de ninguém. Não se recebe mais em casa como dantes. Agora a gente combina encontros com os amigos fora de casa. Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anónimos e amizades enterradas. Cemitério urbano, onde vagueiam almas do outro mundo e fantasmas mais assustados que assustadores.

Casas trancadas. P´ra que abrir? O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo, das broas, do queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos, do leite… que se lixe! Já não temos nem há saudade do compadre e da comadre!

Crónica, por Augusto Gil