As férias constituem o período ideal para a vivência de inúmeras atividades lúdicas que promovem o desenvolvimento psicomotor e a aquisição da autonomia da criança. Acampamentos, campos de férias, campeonatos desportivos, períodos mais prolongados de lazer em casa de amigos ou familiares são ocupações muito aliciantes. Todavia, a necessidade de partilhar quartos expõe o confrangimento associado à enurese e o receio antecipado de humilhação social associada às perdas involuntárias de urina.
Define-se enurese como a perda involuntária de urina durante o sono em crianças com cinco ou mais anos de idade, sem patologia orgânica subjacente. A etiologia reside numa imaturidade funcional, pelo que a doença tende a melhorar progressivamente com a idade. Tem uma elevada incidência familiar, pelo que as crianças cujos pais sofreram da patologia têm maior probabilidade de também virem a ser afetadas.
Trata-se de uma situação muito frequente, que afeta cerca de 14% das crianças com seis anos, o que significa que numa turma de 21 crianças com essa idade é provável que 3 delas sofram da doença. Calcula-se que este número esteja subdiagnosticado, já que cerca de 50% das crianças afetadas não procura ajuda médica.
A situação melhora espontaneamente com o crescimento e, talvez por isso, seja uma patologia desvalorizada. Contudo, uma percentagem reduzida pode prolongar-se para a vida adulta. Para além disso, a enurese tem um elevado impacto na vida social da criança e na sua relação com os pares, assim como na qualidade de vida das crianças e suas famílias. A enurese interfere com o sono e o repouso de toda a família. Por isso afeta o humor, provoca fadiga e sonolência diurna, com consequências no desempenho escolar da criança e laboral dos pais. Paralelamente, afeta a autoestima e promove o isolamento, pelo estigma e medo de vir a sofrer bullying, se o problema for descoberto inadvertidamente pelos parceiros. Quando participam em atividades sociais noturnas, muitas destas crianças aguardam que os colegas adormeçam para colocarem uma fralda, retirando-a e escondendo-a antes de os outros acordarem, para que não sejam “descobertos”.
Para além do sofrimento inerente à patologia, que normalmente é vivido no sigilo exclusivo do seio familiar, e da tristeza pela falta de integração social plena, sabe-se que os efeitos psicológicos da enurese tendem a agravar-se com a idade, podendo culminar em sequelas emocionais e psicológicas a longo prazo.
De uma forma transversal, estas crianças nunca devem ser punidas pelas suas perdas de urina. Para além de não terem culpa, qualquer tipo de castigo ou repreensão é altamente contraproducente, pois agrava o impacto emocional e compromete o curso de terapêuticas futuras. Em contrapartida, todos os sucessos obtidos devem ser enaltecidos e/ou premiados, pois o reforço positivo constitui a base do tratamento. Outras medidas básicas imprescindíveis incluem a ingestão abundante de água e esvaziamentos frequentes da bexiga durante o dia (cerca de cinco a seis micções por dia), com restrição de líquidos a partir do final da tarde e à noite. Os doces, as bebidas açucaradas (sumos) e estimulantes (como chás, coca-colas e café) também devem ser evitados, já que todos aumentam substancialmente a produção de urina. As crianças devem ser incentivadas a não usar fralda e a urinarem antes de dormir: um reservatório vazio consegue reter uma maior quantidade de urina durante a noite.
Na maioria das situações estas medidas são suficientes para superar a situação. Quando se revelam insuficientes, a ajuda médica torna-se indispensável. Algumas crianças dormem tão profundamente que não conseguem acordar para urinar, outras produzem grandes quantidades de urina durante a noite e outras têm bexigas com capacidade reduzida para a idade. Todas elas exigem intervenção médica individualizada. Requerem, ainda, uma atenção particular todas as crianças que iniciem queixas súbitas de enurese após um período superior a seis meses de controlo prévio, que sofram de incontinência diurna, que urinem poucas (menos de quatro) ou muitas (mais de sete) vezes durante o dia, que tenham dor ou ardor ao urinar, que tenham tido infeções urinárias previamente, que sofram de obstipação (prisão de ventre), de incontinência de fezes, de obesidade, alterações comportamentais, dificuldades de aprendizagem, ou que ressonem durante a noite.
Visto que a enurese tem tratamento, os familiares devem ser instruídos de que a ajuda médica é necessária sempre que as medidas gerais se revelem insuficientes. O rastreio médico ativo deve ser realizado na consulta de rotina entre os cinco e os seis anos de idade, já que metade das famílias não procura ajuda médica por este motivo. A triagem pode ser feita pelo Médico de Família, que orientará os casos mais complicados para consultas de subespecialidade pediátrica. A precocidade de orientação, assim como um apoio específico e apropriado aumentam consideravelmente a probabilidade de sucesso terapêutico. Sob terapêutica, as perdas involuntárias de urina vão ficando progressivamente mais controladas, contribuindo para o bem-estar social e emocional da criança e reduzindo o risco de sequelas psicológicas. Não é aceitável que nenhuma criança seja impedida de dormir fora de casa pelo medo de ser humilhada por sofrer de enurese.
Teresa Gil Martins, Pediatra