O novo livro “Marés”, do médico José Manuel Sampaio, foi o pretexto para uma longa conversa sobre livros, medicina e atualidade. Apesar de já estar na casa dos oitenta, assegura que ainda tem muito por fazer.
Dr. porquê um livro de poesia?
Este é o meu terceiro livro de poesia. Em 1973, como candidato da Oposição Democrática do Distrito de Santarém, escrevi um pequeno livro de poesia, O GRITO, com o objetivo de reunir fundos para a campanha. Esse livro foi apreendido pela PIDE/DGS numa das sessões interrompidas pela polícia. Em 2017, ganhei o concurso da SOPEAM (Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos), com um livro de poesia chamado GRITOS. Já escrevi três livros em prosa e um para teatro, mas gosto, especialmente, da linguagem poética livre, não obrigada ao formalismo de regras gramaticais.
O que está neste livro?
O escritor e crítico literário Domingos Lobo diz que MARÉS é um livro de percurso, de memórias e afetos e que se insere no amplo espaço de intervenção cívico-cultural do neorrealismo. Concordo com ele, porque escrevo a partir das minhas vivências e do que me é dado observar na sociedade. É um livro com temática variada com 11 capítulos. Diria que o denominador comum assenta nas preocupações sociais e na necessidade de amizade entre pessoas e povos de todos os credos, raças e cores. É um livro dirigido aos que mais sofrem com as desigualdades e injustiças, mas, simultaneamente, transporta um apelo de otimismo, confiança e esperança num mundo melhor.
Foi um processo de escrita diferente dos outros livros já editados? Como têm corrido as apresentações? Já esteve em Almeirim, Santarém, Torres Novas…
O livro tem sido bem acolhido pelas pessoas que têm ido às apresentações. As salas não estão cheias, mas as pessoas que têm ido referem que valeu a pena e foi um tempo bem passado. O ambiente geral é de agrado, por vezes até emotivo com a leitura de alguns poemas. Em qualquer dos locais, Almeirim, Santarém e Torres Novas, o sentimento de apreço foi semelhante. A maioria dos poemas deste livro foi escrita em França, Normandia, onde habitam meu filho, nora e dois netos. Passei cerca de quatro meses na vila de Saint Pair sur Mer a acompanhar uma situação clínica de meu filho, no ano de 2023. Essa circunstância, longe da minha ocupada e diversificada atividade diária em Portugal, permitiu uma atitude introspetiva diferente, necessária ao processo criativo. Compreendo bem as palavras de escritores profissionais que dizem da necessidade de isolamento em qualquer parte do mundo.
Por vezes sai de casa para escrever. Isso foi revelado pela sua esposa. Porquê?
Preciso de estar só com os meus pensamentos. Não é compatível com o toque da campainha ou qualquer outra forma frequente de interrupção. A procura de ambientes com vista de água é o ideal. Aconteceu em Kairon Plage na Normandia ou acontece, com frequência, no lago dos Patudos, em Alpiarça ou junto ao rio Tejo, nas Caneiras.
Em que se inspira?
As motivações são muito variadas e a necessidade de escrever surge como uma resposta a um impulso interior. Diria que nunca há um plano previamente pensado e organizado como os escritores profissionais. As minhas origens, o meu percurso de vida, as preocupações sociais, estão sempre presentes. Mas, podem surgir desafios ocasionais e eu gosto de participar em concursos. O capítulo do livro Marés “Poesia Pagã” é um exemplo.
Nas apresentações tem juntado também a música? Uma das outras paixões…
Não creio que alguém possa dizer que não gosta de música. É uma linguagem universal que aproxima pessoas e povos. Sempre gostei desde criança. Outra coisa, é aprender a tocar instrumentos musicais e viver dessa prática. É um trabalho exigente e, quando vemos e apreciamos um artista em palco durante uma hora, não nos lembramos da quantidade de horas de ensaio que teve nos dias anteriores. Aprendi a tocar instrumentos musicais por volta dos 70 anos e, simplesmente, não quero deixar de aprender. A construção da minha vida profissional de médico-pediatra foi muito exigente a par das responsabilidades familiares e intervenção política e associativa na autarquia e o tempo não chegava para tudo. Agora, dispondo de mais tempo livre, posso dizer que tocar, mesmo mal, é uma paixão da qual retiro imenso prazer. Sou particularmente atraído pela composição, uma composição que consiste sobretudo em encontrar palavras com sentido poético que encaixem na música doutros autores.
Também tem tido pessoas que foram e são importantes na sua vida?
Sem dúvida. Todos temos. Em primeiro lugar a minha família. No livro MARÉS dedico um poema ao meu avô paterno, outro a minha mãe e uma quadra a meus netos. A minha esposa também está presente. Diria que Família e Amigos são o sustentáculo, o alicerce do homem que sou. No poema específico ao Avô demonstro a gratidão de ter tido a visão de me pôr a estudar, após 4ª classe, no ensino liceal, em vez de seguir o caminho da maioria dos jovens filhos de pequenos «fazendeiros» – a agricultura.
Aos 80 anos e com o seu percurso, o que lhe falta fazer?
Tanta coisa. Gostaria de poder escrever todos os livros que tenho em mente, melhorar a minha prática musical, aprender melhor outras línguas e culturas e continuar com a paixão de viajar. Gostaria de pôr o pé em todos os lugares onde não estive. Sei que é impossível, mas, como diz o poeta, o sonho comanda a vida. Enquanto tiver saúde é assim que gostaria de continuar, a par do trabalho associativo e político e da pequena prática profissional que ainda tenho. Não consigo cortar o cordão umbilical de ser médico-pediatra.
Onde vai buscar essa energia toda?
Na enorme alegria e força de viver. A vida é um presente a desfrutar, o grande tempo do Homem. O pior que qualquer pessoa com idade pode fazer é «deixar o velho entrar dentro de si» e ficar parado o dia inteiro a ver televisão. Um envelhecimento com atividade física e mental é absolutamente necessário para uma melhor saúde e qualidade de vida. E há sempre tanta coisa para aprender e criar…
E a medicina onde fica no meio destas tarefas?
Estou na medicina por paixão. Após o 7º ano liceal não foi a minha escolha, por imaturidade e falta de aconselhamento. Fui para o Técnico (Engenharia Química), fiz algumas cadeiras, mas chumbei nas matemáticas gerais e, por consequência, o ano. No ano da repetição, adoeci gravemente (tuberculose com derrame pleural) e estive internado quatro meses no piso 9 do Hospital de Santa Maria. Éramos quatro na mesma enfermaria e fui o único a sair de lá com vida. Quando saí pensei para mim: – gosto disto, é isto que quero fazer. Sou um caso, talvez especial, que descobriu a sua vocação pela porta da doença. Hoje, tenho um pequeno horário no posto clínico do SAMS em Santarém e não me imagino a terminar a minha carreira. Tenho imenso prazer no que faço e sinto que gosto das pessoas que me procuram e que elas gostam de mim. Ainda me sinto útil aos outros como médico-pediatra.
Já está a escrever o próximo livro?
Há um projeto em mente há muito tempo adiado. Gostaria de o conseguir realizar. Em 2011 escrevi um livro chamado SAL da VIDA. O livro circulou na altura e esgotou. Fala das minhas andanças por Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e Timor Leste. Nestes três últimos países, em trabalho médico com a Assistência Médica Internacional (AMI). Gostaria de voltar a rever o livro e acrescentar-lhe vivências doutros países onde estive posteriormente e fazem parte da história de Portugal. Refiro-me ao Brasil, São Tomé e Príncipe e Macau.
Permita-me olhar para a sociedade e para os dias de hoje. Como vê este conflito na Ucrânia? E as medidas de Trump? Onde é que isto vai acabar?
O meu olhar para este conflito na Ucrânia coincide com o olhar do Partido Comunista Português. SIM à PAZ, Não à GUERRA. Já morreram demasiados jovens russos e ucranianos nesta guerra. Recuso-me a acreditar num mundo dividido entre Bons e Maus e observo como em países ocidentais (EUA e EUROPA), se usam dois pesos e duas medidas de acordo com os seus interesses. Vejam-se as atitudes diferenciadas relativamente à Ucrânia e Palestina, ao genocídio na faixa de Gaza, com o seu cortejo de mortes (mais de 52.000), a maioria mulheres e crianças. Os Direitos Humanos têm de ser mesmo para todos os Seres Humanos, habitantes do planeta Terra.
Todas as guerras têm causas e a sua gestação é, normalmente, longa. Todos as pessoas de bom senso e, sobretudo, os Dirigentes com responsabilidades governativas deveriam fazer tudo para as evitar. Não é isso que tem acontecido. A invasão do Iraque, sem o apoio da ONU, baseada numa mentira, tem uma estimativa de 500.000 mortos, a maioria civis, e causou instabilidade política em toda a região, com consequências terríveis para a população que ainda hoje perduram. Muitos outros exemplos se poderiam dar. Mas quem condena hoje os seus responsáveis? Quem já não se lembra da cimeira dos Açores onde os quatro participantes se tornaram cúmplices, diante do Mundo, da invasão do Iraque? Onde está o Tribunal Internacional de Defesa dos Direitos Humanos? Quanta informação no sentido de abafar e justificar os crimes do invasor? Porquê o constante aumento dos orçamentos dos países para a Defesa e a criação permanente de um clima de medo para o justificar? Quem lucra com as guerras além dos industriais do armamento? Quantas guerras se poderiam evitar, através do diálogo e de conversações sérias de paz, se fossem tomados, em devida conta, os interesses e direitos de Segurança de todos os países? O desmantelamento da URSS em 1991 e o incumprimento das promessas ocidentais, a expansão da NATO para Leste até às fronteiras da Federação Russa, o golpe de Estado de 2014 em Kiev e a guerra civil que se seguiu no Donbass (região habitada por 80% de população russófona), a destruição dos gasodutos, são fatores anunciadores da eclosão duma guerra que podia e deveria ter sido evitada. A Ucrânia tem servido de “barriga de aluguer” numa guerra que envolve também os EUA e países da EUROPA.
No entanto, prefere-se dizer nos mídia, todos os dias, que a guerra na Ucrânia começou no dia 24 de fevereiro de 2022, sem referência às causas anteriores. Também não se diz que a tragédia do povo palestino data de 1949 e não de 7 de outubro de 2023. A ONU reconheceu o direito da existência do Estado Palestino ao mesmo tempo que o Estado de Israel, mas, como todos sabemos, esse direito tem sido sempre protelado e são muitos os países ocidentais que assobiam para o lado ou se limitam a declarações hipócritas de preocupação. Qualquer invasão será sempre de condenar, mas, seria bom e justo que todos os mídia, prestassem mais atenção às verdades históricas, de ontem e hoje, com imparcialidade. Ainda não há muito tempo, ouvimos a Ex-Chanceler Merkel, signatária dos Acordos de Minsk, que pôs termo a uma guerra civil no Donbass, que custou 15.000 vidas, dizer que os mesmos só serviram para dar tempo à Ucrânia de se armar. Seria também bom que os Acordos de Helsínquia (1975) que estabeleceram a doutrina sobre o direito dos Estados à sua própria Segurança, fossem revisitados pelos mídia.
Quanto ao Trump, nem sei o que dizer, tão disparatadas me parecem algumas das suas propostas. Cada dia é uma surpresa, coloca em evidência as contradições do capitalismo, e creio que a procissão ainda vai no adro…
O mundo está hoje mais perigoso e em mudança. O mundo de poder unipolar com o domínio dos EUA está a passar, à nossa frente, para um mundo multipolar em que China, Rússia, BRICS, ocuparão um lugar determinante no futuro. Há um parto doloroso a acontecer. Tenho esperança que o futuro nascituro se chame PAZ.
Depois da Covid imaginava viver um apagão?
Felizmente que este tipo de situações é raro. Foi consensual que a comunicação e atuação do Governo poderia ter sido melhor e mais rápida. Um inquérito rigoroso a todos os agentes do circuito – políticos e técnicos – com responsabilidades nas referidas áreas parece-me necessário. Seria verdadeiramente importante aprender com as conclusões desse inquérito e melhorar a intervenção no futuro. Ficou também a questão de saber se o setor estratégico da energia não deveria estar nas mãos do Estado, se não deveria ser renacionalizado? Aprender, aprender sempre!
“Não me afastei da política”

Afastou-se na política? Porquê?
Não me afastei da política. Estou muito atento à política do meu país e do mundo. Deixei a política autárquica onde estive cerca de 30 anos. A ida do meu filho para Moçambique após o encerramento da Opel/Azambuja, motivou a decisão de encerrar a minha atividade autárquica. Era líder de bancada da CDU e senti que não podia ter uma intervenção tão assertiva como era desejável. Também a minha filha e genro foram trabalhar para o Brasil pouco tempo depois. As visitas a Maputo e São Paulo aconteceram com regularidade e algum tempo de permanência. Hoje em dia sou dirigente do Murpi (Movimento Unitário de Reformados Pensionistas e Idosos), da Farpir (Federação das Associações dos Reformados, Pensionistas e Idosos do Ribatejo) e da Arpical (Associação de Reformados, Pensionistas e Idosos do Concelho de Almeirim.
Está preocupado com a situação política atual do pais com duas eleições em tão pouco tempo?
As eleições são sempre uma opção democrática para tentar resolver crises governamentais. A minha preocupação é mais que o novo governo, a sair das próximas eleições, não resolva o problema dos que trabalham e produzem a riqueza do país. A melhoria dos salários é uma exigência justíssima. Assustam-me as tendências políticas de privatização crescente de sectores-chave da economia, as frequentes notícias da grande corrupção, o aumento das desigualdades sociais, os lucros obscenos de bancos e algumas grandes empresas e as políticas seguidas relativamente à habitação, saúde, educação e segurança social. No setor dos mais idosos, em que me mantenho ativo, preocupa-me que, dos cerca de 2 milhões de aposentados e reformados, 80% recebam menos de 500 euros mês.
E o que perspetiva para as eleições autárquicas?
Nas eleições autárquicas, os candidatos estão mais próximos do povo; por isso, a sua personalidade e comportamento cívico contam. No entanto, as máquinas partidárias exercem também grande influência. O resultado final resulta habitualmente da conjugação desses dois fatores. Como elemento apoiante da CDU e conhecendo internamente o trabalho abnegado de muitos dos seus autarcas, só posso desejar que a CDU suba o número de mandatos nas próximas eleições, para bem das populações.