No passado dia 28 de abril, os habitantes da Península Ibérica foram surpreendidos por uma inesperada e inexplicada falta global de eletricidade. As verdadeiras causas ainda não estão esclarecidas. Mas é mais importante centrarmo-nos nos seus efeitos e consequências do que meditar sobre a sua etiologia.
Percebemos que cada pequeno gesto do nosso quotidiano tem uma conexão mágica com os eletrões que guiam a nossa vida, mantendo-nos numa absoluta dependência da eletricidade para satisfazer a maioria das nossas necessidades básicas. A gravidade das suas consequências é proporcional ao tempo de abstinência.
Embora aceitemos a dádiva de ter eletricidade à distância de um interruptor como um bem adquirido, percebemos que esse gesto implica um trabalho muito complexo, executado em rede e dependente de inúmeros recursos permanentemente disponíveis, num espaço físico e internacional muito alargado. Pudemos constatar que, para salvar a vida de muitas pessoas, houve necessidade de gerir muito bem os recursos alternativos criados por geradores. Os custos e a logística necessários exigiram inúmeros esforços, que deveriam ser do conhecimento de todos. Devemos pensar que, tal como nesse dia, mas numa escala mais alargada, os recursos disponíveis no nosso planeta são igualmente finitos. Por isso, temos o dever de os gerir de uma forma conscienciosa e com elevado respeito pelas gerações futuras, obrigando-nos a repensar os nossos hábitos de vida.
Esta experiência também nos permitiu vivenciar uma milionésima parte do sofrimento em que vive um elevado número de pessoas no nosso planeta que, vítimas de infortúnios como a guerra e a pobreza, dependem da gestão dos ínfimos recursos que têm disponíveis, dia após noite e noite após dia, sem esperança e centrados num único objetivo: o da sobrevivência!
Nesse dia ficou também patente o estado da saúde mental da população. A busca incessante de notícias imediatas (que permaneciam sem resposta) manifesta a nossa dependência da conexão superficial e imediatismo. O medo e a incerteza proporcionaram um açambarcamento egoísta e perfeitamente dispensável de inúmeros víveres julgados indispensáveis à sobrevivência num futuro imediato. Por outro lado, a desconfiança e o ódio latentes, encontraram eco na proliferação imediata de inúmeras teorias da conspiração e de notícias que permanecem sem confirmação, mas capazes de perpetuar e ampliar os sentimentos de medo, incerteza e insegurança.
Naturalmente, muitas pessoas ficaram preocupadas com a viabilidade dos alimentos que guardavam em casa. Para responder a essas questões, a Direção-Geral da Saúde (DGS) publicou recentemente algumas normas orientadoras, destinadas a evitar o desperdício: o frigorífico mantém a temperatura durante cerca de 4 horas, se não for aberto; o congelador mantém os alimentos congelados até 48 horas (24 horas se estiver apenas meio cheio), desde que a porta se mantenha fechada; alimentos que, quando a energia for resposta, ainda apresentem cristais de gelo ou se mantenham frios como se estivessem refrigerados poderão, na maioria dos casos, ser cozinhados ou recongelados; alimentos perecíveis (carne, peixe, lacticínios, refeições preparadas, etc.) que estiveram acima de 5°C por mais de 2 horas podem já não ser seguros para consumo (a temperatura pode ser avaliada com um termómetro para alimentos).
A DGS também publicou alguns dos sinais reveladores de degradação dos alimentos. São sugestivos de deterioração: a carne e o peixe de consistência mole ou viscosa e odor desagradável e carne de cor escurecida; os produtos de charcutaria (fiambre, chouriço ou presunto) com alterações do cheiro, textura, sabor e viscosidade, bolores e, se embalados, com embalagens opadas (“inchadas”); queijo fresco, de barrar e requeijão com cheiro alterado, bolor, aguadilha e embalagem opada; fruta e hortícolas pré-preparadas e embaladas com perda de cor, amarelecidas, escurecidas, amadurecidas e com água de condensação; iogurtes com embalagens opadas e cheiro desagradável; leite aberto com alteração do cheiro e textura (“coalhado”); refeições prontas (por exemplo sobras e sopas) com odor desagradável, fétido, alteração da consistência ou com libertação de líquido (secreções).
Cortes de energia mais prolongados também podem ocorrer por motivos climáticos, falhas técnicas ou outras emergências. Para lidar com essas eventualidades, a DGS recomenda: manter as portas de frigoríficos e congeladores fechadas o máximo de tempo possível; ter em casa um termómetro para alimentos para monitorizar as suas temperaturas; ter preparado um pequeno stock de alimentos não perecíveis (como conservas) e água potável (cerca de 2 litros por pessoa por dia, para um período de 3 dias); guardar gelo ou acumuladores de frio no congelador para ajudar a manter temperaturas baixas; recorrer a origens de água alternativas em situações de emergência (nomeadamente água engarrafada) e, caso não esteja acessível, seguir as orientações das autoridades, podendo ser necessário proceder ao tratamento da água antes do seu consumo (ferver a água durante pelo menos 1 minuto antes de consumir); utilizar outras fontes de água, nomeadamente poços, apenas para lavagens e rega; manter uma lanterna, um rádio a pilhas e pilhas extra acessíveis; utilizar lanternas em vez de velas, para maior segurança; manter-se informado através de canais oficiais (Órgãos do Governo, Autoridades de Saúde, Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, Entidade Gestora de Distribuição de Água, entre outras).
Mas nem tudo foi mau, pois nesse dia os espaços exteriores foram devolvidos às pessoas e o egoísmo também deu lugar à solidariedade. Sem a possibilidade de realizar tarefas dependentes da eletricidade e, com o intuito de poupar a energia disponível nos dispositivos eletrónicos, os adultos conheceram os vizinhos que até então desconheciam, ouviram-se as brincadeiras e o riso das crianças que permaneceram contentes na rua, os pais recorreram aos fogões a gás dos avós para aquecer a comida dos seus filhos, a rotina foi orientada pela disponibilidade da luz solar, e as crianças continuam a reproduzir a recordação animada do dia feliz em que jantaram à luz das velas e que brincaram até tarde no exterior.
Afinal, concluímos que é possível vivermos felizes com algumas restrições elétricas, aprendendo a valorizar a natureza que nos rodeia e os bens que julgamos ter como um dado adquirido. Ensinamentos preciosos adquiridos em dias difíceis permitem-nos gerir no quotidiano os recursos materiais e imateriais disponíveis (incluindo o nosso precioso tempo) de forma mais sustentável.
Teresa Gil Martins – Médica pediatra