A Lista de Ritler

Consigo compreender as lágrimas da deputada Isabel Mendes Lopes enquanto ouvia uma lista de nomes de crianças debitada por André Ventura durante uma sessão parlamentar.

Aquela lista podia perfeitamente corresponder à turma da minha filha e incomoda (para ser eufemístico) que um partido que pretende “limpar Portugal” eleja crianças de três anos, que a minha filha chama de amigos, como o lixo que quer varrer do país. Incomoda muito termos chegado ao ponto em que o loci do ódio são os seres mais indefesos e mais inimputáveis que compõem a nossa sociedade.

Já antes, Rita Matias tinha ensaiado o mesmo número no Tik Tok, lendo o nome e sobrenome de crianças constantes numa lista de entrada no pré-escolar, seguindo-se a uma cena em que encarnou no babuíno Rafiki e exibiu um bebé na primeira sessão parlamentar desta legislatura, um bebé apenas 12 anos mais novo do que a idade que ela acha razoável uma menina ter filhos.

Esperava-se que Rita Matias, agora que namora com um criminoso, satisfazendo assim o seu complexo de Electra, estivesse menos amarga, mas não, antes pelo contrário. É bem possível que Hélio Filipe seja o primeiro bad boy da história que não dá conta do recado.

Compreendo as lágrimas, mas também compreendia gargalhadas. Ver André Ventura preocupado com nomes que não são tipicamente portugueses, enquanto lidera um partido que tem uma significativa parte do seu eleitorado a meter aos filhos nomes como Enzo e Yara, é bastante risível.

Na altura em que eu andava na escola também se sentia diferenciação no trato, de acordo com o nome que se tinha. No caso era mais o sobrenome, os apelidos compostos eram mais valorizados do que os mais plebeus. Décadas depois, esse efeito esbateu-se e, por isso, é fundamental para quem quer uma sociedade em ferida aberta, criar uma clivagem social que nunca tinha existido. Agora são os Silvas, os Santos e os Oliveiras que se tornaram snobs em relação aos Patels, aos Lis e aos Souzas. Ventura criou em Portugal uma burguesia de descamisados.

A veracidade da lista continua por esclarecer, mas pouco importa, sabe-se que exemplifica uma realidade transversal a todo o país, exceção feita apenas, e registando-se a ironia, às escolas do Parque das Nações, o bairro de classe alta onde fica localizado o condomínio fechado de André Ventura, construído por cabo verdianos, com piscina limpa por indianos, relva aparada por nepaleses e elevador mantido por brasileiros.

Refira-se que a dupla Ventura e Matias está a atirar crianças para o campo de tiro sob o pretexto destas estarem a ser privilegiadas em relação às crianças autóctones no acesso às creches públicas e pré-escolar, uma falácia facilmente desconstruída pela leitura do anexo da portaria 198/2022 que elenca os dez critérios de admissão e priorização no acesso às creches. Em nenhum deles se discriminam positivamente os filhos de imigrantes.

Mas a verdade é, muitas vezes, um empecilho numa boa narrativa e Ventura sabe que a escola pública é um dos pilares que ele primeiro tem de destruir porque é o principal vetor de integração, não só das crianças, mas, sobretudo, das famílias. Ventura sabe que a sua maior ameaça são crianças de três anos porque para os Maneis e as Marias dessa geração, que desde cedo se sentam na escola ao lado dos Ahmeds, das Priyas e dos Maicon Douglas, toda a retórica do Chega vai deixar de fazer sentido.

Portugal é um país eternamente insatisfeito. Num dia lamentamos a falta de crianças e no dia seguinte, quando o saldo demográfico fica ligeiramente positivo, lamentamos que as crianças não tenham o nome que nós queríamos. Se Ventura e Matias contribuíssem para este indicador, havia menos lamentos e talvez se ocupassem mais com os seus filhos do que com os dos outros.  

A normalização do ódio é como entrar no mar do Portinho da Arrábida, vai-se metendo o pé, avança-se lentamente e quando chega à zona da barriga há quem decida voltar para trás. Nesta analogia, Aguiar-Branco é o miúdo insuportável que vem mandar bombas mesmo ao nosso lado.

Já que falamos em apelidos, às vezes dá a sensação de que o do Presidente da Assembleia da República foi dado quando alguém lhe perguntou “José Pedro, o que bebes?” tal é a dimensão do desastre que tem sido o seu exercício do cargo.


João Bastos