Com uma carreira sólida na costura, marcada pela criatividade e pela atenção ao detalhe, a modista Maria Lúcia cria, no seu ateliê, em Almeirim, peças únicas e personalizadas que refletem a identidade de cada cliente.
Como nasceu o gosto pela costura?
A minha grande referência foi a minha avó materna, Palmira. Mãe de seis filhos, com poucos recursos, conseguia vestir toda a família. Ela reciclava roupas, transformava, por exemplo, uma camisa de adulto em calções para as crianças, e fazia tudo com muito engenho — algo que, para mim, tem um enorme valor sentimental. A minha mãe, por sua vez, também aprendeu a costurar e fez disso a sua profissão. Posso dizer que a arte de unir tecidos já vai na terceira geração.
Recorda-se da primeira vez que pegou numa agulha?
Sim. Em criança já vestia as minhas bonecas com os restos de tecido que sobravam dos trabalhos da minha mãe e lembro-me de que a primeira peça de vestuário que confecionei foi uma blusa com carcela para mim. Desde muito nova ajudava-a e, por sua imposição, aos 13 anos deixei de estudar. Durante dois anos fiquei em casa a apoiá-la, tornando-me a sua assistente. Foi nessa altura que comecei a dedicar-me mais seriamente à costura. Aos 16 anos retomei os estudos, mas a paixão por criar peças já fazia parte da minha vida.
Trabalhou vários anos em lojas de vestuário. Como foi essa experiência?
Foram sete anos a trabalhar ao lado da senhora Olívia Palhoto, proprietária de um pronto-a-vestir, em Fazendas de Almeirim. Comecei no atendimento ao público — algo que adorei e de que ainda hoje tenho saudades —, onde tive oportunidade de contactar com muitas pessoas, incluindo vários representantes de marcas. Quando um cliente comprava umas calças, um casaco ou um vestido e era preciso ajustar, eu tratava das baínhas ou das alterações necessárias. Hoje em dia, essa prática está a desaparecer, mas naquela altura, era comum haver costureiras nas próprias lojas para fazer pequenos arranjos, o que acrescentava muito valor ao serviço.
Mais tarde, a D. Olívia adquiriu outro pronto-a-vestir em Almeirim e um terceiro em Quarteira, no Algarve. Acompanhava-a regularmente, ajudando nas trocas de coleção — primavera/verão e outono/inverno — e, pouco depois, passei a desempenhar funções de chefe de loja e também de vitrinista.
Depois de casar e dedicar-se à família durante 10 anos, a costura continuou a fazer parte da sua vida?
Quando fiquei grávida da minha filha Simone, o meu filho Rodolfo — que tinha, na altura, 8 anos — e eu só conseguíamos passar algum tempo de qualidade aos sábados à tarde e aos domingos. Com o nascimento da Simone, abdiquei da minha vida profissional e dediquei-me inteiramente à família. No entanto, a costura manteve-se sempre presente: fiz cortinados, colchas para a minha casa e roupas para os meus filhos, peças únicas feitas pela mãe.
Quando a Simone começou a frequentar a creche, comecei por fazer o seu bibe e, rapidamente, acabei por confecionar os bibes das outras crianças da sala e dos anos seguintes, assim como lençóis e almofadas. Mas não fiquei por aqui: em casamentos e outros eventos, gostava de marcar a diferença — quem não gosta? Então, ia a uma retrosaria, comprava um tecido e criava peças para mim. O sucesso foi tal que amigas e conhecidas começaram a contactar-me para que eu lhes criasse modelos para ocasiões especiais. As clientes foram aparecendo, uma atrás da outra, o trabalho foi aumentando, e a minha mãe ofereceu-me uma máquina “cose e corte”, que utilizo ainda hoje no meu ateliê. Mais tarde, investi numa máquina de costura semiprofissional para dar resposta à crescente procura. Com bom equipamento, comecei a aperfeiçoar cada vez mais a minha execução, realizando também emendas, substituindo forros de casacos e colocando fechos.
Quando começou a criar para outras pessoas, como evoluiu a sua prática e técnica de costura?
Eu nunca frequentei nenhum curso, sou autodidata. Aprendi muito com a minha mãe e, sobretudo, através dos arranjos que ia fazendo. Sempre que desmanchava uma peça de vestuário, percebia como tinha sido concebida e quais as técnicas aplicadas. Curiosamente, aquilo que era a última etapa de confeção acabava por ser a primeira a desfazer — e esse raciocínio ajudava-me depois a aplicar os mesmos métodos nos meus próprios trabalhos.
Mais tarde, quando a minha filha, com 16 anos, foi estudar para a Escola Artística António Arroio, em Lisboa, durante a primeira semana eu acompanhava-a todos os dias: levava-a de manhã e ia buscá-la ao final do dia, regressando a Almeirim. Nesse período, para ocupar o tempo, comecei a colaborar no ateliê da estilista Jaqueline Roxo, uma referência internacional. Não havia qualquer remuneração, mas foi, para mim, uma enorme escola e uma aprendizagem inesquecível.
O que a motivou a dar o passo para abrir o seu primeiro ateliê por conta própria e como recorda esse início?
Com a ida do Rodolfo para a universidade e a Simone a entrar no 5.º ano, comecei a ter mais tempo disponível e surgiu a ideia de abrir um ateliê em Fazendas de Almeirim, onde eu vivia, embora sempre com algum receio. Recordo-me bem de um momento, em 2014, que foi decisivo: numa quarta-feira, a minha amiga Patrícia Gonçalves, designer de interiores, convidou-me a ir com ela ao Lisboa Design Show, na FIL, já no Parque das Nações. Ao assistir ao desfile e ver de perto as criações dos grandes designers nacionais, pensei para mim mesma: “Isto também consigo fazer. Melhor, não sei, mas tenho tantas ideias e peças na minha cabeça.” A Patrícia, em tom de brincadeira, respondeu: “Para o ano estás cá.” Rimo-nos, brindámos, e essa experiência acabou por ser o impulso de que precisava para começar a acreditar no meu sonho — o sonho que viria a concretizar com a abertura do meu primeiro ateliê. Entretanto, ainda antes de irmos embora, decidi assistir a uma conferência de imprensa da consultora de compras Adelaide Nunes. Parecia que ela falava diretamente comigo: um discurso motivacional que reforçava que, independentemente da área de atuação, devemos acreditar em nós mesmos, confiar nas nossas capacidades e apostar no empreendedorismo.
No dia seguinte, ao comprar um tecido numa retrosaria em Almeirim, ouvi alguém mencionar que havia um espaço comercial vago para alugar. Dirigi-me imediatamente à Rua Dionísio Saraiva, nº28, onde ficava o espaço, para falar com os proprietários. Não sei porquê, mas tudo se encaixou: vinha de Lisboa com a ideia na cabeça e, de repente, estava no sítio certo à hora certa. O espaço era pequeno, apenas 17 metros quadrados, mas muito central. Menos de um mês após visitar o Lisboa Design Show na FIL, em 14 de outubro de 2014, abri o meu ateliê a 12 de novembro.
Como foi, um ano depois, apresentar a sua primeira coleção na FIL?
Fui convidada, em 2015, de 7 a 11 de outubro, para expor uma mini coleção de oito coordenados. Na altura, sem nada desenhado, desloquei-me à capital para comprar os tecidos, escolhendo-os e colocando-os no carrinho. Ao chegar a Almeirim, espalhei-os na mesa de corte e comecei a idealizar a coleção à medida que via e tocava cada tecido.
A partir dessa experiência, surgiram convites para visitar várias feiras internacionais, como a MOMAD em Madrid, a Milano Única, em Milão e a Modtissimo no Porto. Também recebi outros convites, mas não consegui aceitar, porque trabalho sozinha e não tenho ninguém na retaguarda para me apoiar.
Que tipo de clientes procuram o seu trabalho?
As minhas clientes vêm de várias regiões do país e têm idades variadas, desde avós a filhas e netas. Crio modelos para noivas e seus familiares, para eventos especiais e também para bailes de finalistas. Apesar dessa diversidade, todas partilham o gosto por peças únicas e feitas à medida, valorizando a qualidade, o cuidado com o detalhe e procurando algo diferente da fast fashion.
Como se estabelece a relação de confiança que transforma cada peça numa criação única?
Ao longo dos anos, fui criando uma relação de confiança com cada cliente: conheço os seus gostos, sei o que valorizam e, muitas vezes, acabo por lhes propor ideias e criações que se tornam peças especiais nas suas vidas. Para mim, cada cliente é uma parceria — transformar a sua história e personalidade em tecido e corte. Muitas vezes, acabamos por construir uma amizade. Tenho grandes amigas que começaram como clientes, e é muito bonito quando alguém deposita 100% de confiança no meu trabalho. Isso funciona nos dois sentidos: eu confio na cliente e ela confia em mim. Tudo tem de encaixar, fluir naturalmente, e a confiança está acima de tudo. Se houver alguma desconfiança — “será que vai ficar bem?” — isso compromete o resultado. Eu digo sempre: confie, confie, que eu dou sempre o melhor de mim.
Que critérios utiliza na seleção dos materiais e como acompanha todo o processo, do tecido à peça final?
Tenho sempre cuidado com a escolha dos materiais, optando por tecidos sustentáveis, mesmo que alguns sejam mais caros. Para isso, faço contactos com representantes em Portugal, mas também trabalho com fábricas na Itália, Grécia e Espanha. Nas grandes feiras, adquiro amostras, faço uma seleção criteriosa e envio-as para o ateliê. Apresento essas amostras às minhas clientes e, juntas, escolhemos o tecido mais adequado para o modelo que desejam.
A partir daí, começa o desenvolvimento da peça. Agendamos tudo com antecedência, pois cada criação exige tempo e cuidado. Por exemplo, um vestido demora cerca de três dias desde a primeira abordagem até à finalização, passando por várias provas. No caso de vestidos de noiva, costumo fazer um protótipo, especialmente quando se trabalha com rendas — que são muito mais caras que tecidos base — para evitar qualquer desperdício.
Prefiro sempre trabalhar diretamente no corpo da cliente, tirando medidas precisas do busto, costas, cintura, anca e altura até ao joelho, entre outros pontos específicos. Cada peça é feita à medida, e o cuidado com estas medições garante que o resultado seja único e perfeito.
Se tivesse a oportunidade de vestir uma figura pública, nacional ou estrangeira, quem escolheria e porquê?
Se tivesse essa oportunidade, vestia a fadista Marisa, não pela fama, mas pelo modo como canta naturalmente, interpretando cada letra com entrega, sentimento e alma.












