‘O sono é uma necessidade básica da vida’, por Teresa Gil Martins

O sono é um estado fisiológico e comportamental reversível e tipicamente recorrente por várias horas. Caracteriza-se pela suspensão parcial ou total da consciência, inibição voluntária da atividade muscular e relativa insensibilidade à estimulação, com características muito diferentes das que ocorrem nas perdas de consciência devidas a trauma e a doença cerebral, assim como ao efeito de algumas drogas.

O sono é uma necessidade básica do ser humano. Para além do descanso que proporciona, possui um indispensável efeito reparador. O cérebro é invadido por estímulos ininterruptos durante o dia, necessitando de períodos intermitentes de acalmia para os processar. Desta forma, os períodos de sono são imprescindíveis para a execução de tarefas impossíveis de realizar quando se encontra desperto. Este mecanismo tem uma analogia grosseira com o que ocorre num supermercado no primeiro dia de saldos. A invasão de inúmeros clientes no momento da abertura provoca desarrumação, produtos partidos, com desperdícios, restos e lixo a avolumarem-se no chão a uma velocidade muito superior à da sua reordenação. Por mais atarefados e eficientes que os seus empregados sejam na reposição da ordem, só depois de encerrar o estabelecimento é que surge a acalmia indispensável à reparação adequada dos estragos ocorridos durante o dia. 

É crescente a evidência de que o défice de sono, tanto a nível quantitativo (diminuição do tempo total) como qualitativo (fragmentação do sono com despertares frequentes ou diminuição do sono profundo), apresenta repercussões na saúde e no bem-estar da criança, interferindo com o seu desenvolvimento físico, cognitivo, emocional e social. Numa forma extrema, a privação de sono tem mesmo sido usada como forma de tortura de prisioneiros.

Um sono adequado é imprescindível ao bom funcionamento imunitário e à regulação do apetite. Uma criança que não dorme adequadamente não está desperta para as atividades diurnas e está incapaz de pensar, o que condiciona as capacidades de memorização, de aprendizagem, bem como o funcionamento intelectual diurno. A longo prazo, interfere com a maturação cerebral e, consequentemente, com o potencial cognitivo individual. A privação quantitativa ou qualitativa de sono interfere com a capacidade do córtex frontal de regular as emoções, aumentando a tristeza, a ansiedade, a irritabilidade e o stress, diminuindo a autoestima, a autonomia e, consequentemente, a autoconfiança. Em suma, crianças com alterações do sono têm risco acrescido de infeções, de obesidade, de doença cardiovascular precoce, de acidentes (por menor atenção ao meio envolvente), de insucesso escolar, de problemas comportamentais (agressivos ou disruptivos) e sociais. Está documentado que o sono também interfere com o crescimento, justificando o ancestral ditado de que “deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer”. 

Calcula-se que cerca de 20 a 30% das crianças sofram de problemas relacionados com o sono e que cerca de 94% dessas situações se resolvam com intervenção meramente comportamental. As causas variam com a idade e condicionam as respetivas orientações. As crianças mais pequenas são mais afetadas por despertares sucessivos ao longo da noite; em idade pré-escolar os pais têm frequentemente dificuldade em gerir os comportamentos de protesto e relutância das crianças na hora de deitar; na idade escolar, as crianças revelam mais dificuldades em adormecer; por sua vez, os adolescentes apresentam causas mais semelhantes às dos adultos. Problemas do desenvolvimento psicomotor, doenças psiquiátricas e doenças respiratórias podem requerer cuidados específicos.

As regras de higiene do sono devem ser instituídas desde uma fase muito precoce na vida e compreendem critérios quantitativos e qualitativos. As recomendações quantitativas (número de horas de sono) variam com a idade da criança:

Entre 4 e 12 meses de idade: 12 a 18 horas;

Entre 1 e 2 anos de idade: 11 a 14 horas;

Entre 3 e 5 anos de idade: 10 a 13 horas;

Entre 6 e 12 anos de idade: 9 a 12 horas;

Entre 13 e 18 anos de idade: 8 a 10 horas.

Embora não existam recomendações gerais para os bebés com idade entre os zero e os 3 meses de idade, admite-se a necessidade de um período total de sono compreendido entre 14 e 17 horas. Até aos 5 anos, o tempo de sono inclui o período da sesta. 

Os critérios qualitativos básicos são transversais a todas as idades, de aplicação universal e são de cariz preventivo e curativo. Nesse contexto, a criança deve possuir uma cama própria, consistente, usada exclusivamente para dormir (não deve ser usada para atividades lúdicas, nem como local de castigo ou de refeição). Deve estar colocada num quarto escuro, arejado, com ambiente calmo e temperatura confortável. A criança deve ser deitada acordada na cama e deve adormecer sem a presença de nenhum adulto. A criança não deve ir com fome para a cama, nem deve ser deitada depois de uma refeição abundante, recomendando-se uma refeição ligeira antes de deitar. Bebidas excitantes com cafeína ou teína devem ser evitadas, principalmente à noite. Cerca de 20-45 minutos antes da ida para a cama devem iniciar-se as rotinas de dormir, que devem ser constantes e consistentes nas suas características e horários (incluindo fins de semana e férias). Pelas suas características altamente estimulantes, todos os ecrãs (televisão ou outro dispositivo eletrónico) devem ser evitados na hora que antecede a ida para a cama, pelo que esses dispositivos não devem existir nos quartos onde as crianças/adolescentes dormem. Embora as atividades ao ar livre e o desporto sejam essenciais à saúde, também elas interferem com o sono profundo, pelo que não devem ser realizadas no final do dia. 

Melhorar os hábitos do sono significa dormir melhor. Se as dificuldades persistirem, os cuidadores devem procurar cuidados médicos.

Numa fase em que se encontram em preparação os horários (curriculares e extracurriculares) do próximo ano letivo, sensibilizam-se as instituições educativas e de desporto, autarquias e educadores para que trabalhem de forma coordenada e construtiva, gerindo um equilíbrio que respeite uma distribuição horária balanceada das diferentes necessidades básicas das crianças e adolescentes. Apesar de a importância da prática desportiva ser inquestionável, o seu horário deve ser compatível com uma adequada qualidade e quantidade do sono. Em suma, comer bem, dormir bem e fazer exercício físico devem coexistir de forma pacífica e equilibrada, por forma a assegurar o pleno desenvolvimento das nossas crianças e das suas capacidades.

Teresa Gil Martins – Médica Pediatra

Envie a sua opinião ou proposta de tema para jornal.almeirinense.comercial@gmail.com