‘Sobre a jornadofobia’, por João Bastos

 Em plena silly season o país participou coletivamente numa interessante e produtiva discussão que, admiravelmente, não foi relacionada com o mercado de transferências futebolísticas.

A Jornada Mundial da Juventude dividiu a opinião pública num debate maniqueísta entre quem é a favor que ela tivesse acontecido em Portugal, de perfil invariavelmente católico e invariavelmente de direita e quem é contra, com um perfil invariavelmente ateu e invariavelmente de esquerda, uma divisão interessante, já que os países mais católicos do mundo são, coincidentemente ou não, aqueles que têm governos mais à esquerda.

O argumento que o estado é laico é factual, mas inútil nesta discussão porque o país não é laico. Prova disso é a mobilização que acontece todos os anos a partir de maio com milhares de peregrinos numa manifestação de fé sem paralelo com nenhuma outra. Nem mesmo quando ganhámos o Euro o país andou seis meses a celebrar, nem o feriado do Éder foi instituído. Esse sentimento que mobiliza grande parte do país não pode ser negligenciado.

O estado também não deixa de ser laico quando faz tolerância de ponto à função pública na véspera de um feriado religioso porque o estado não perde o seu carácter de laicidade por respeitar as crenças e as tradições familiares das pessoas. 

Também a logística envolvida nas peregrinações a Fátima que compreende as forças de segurança, bombeiros e proteção civil ou a tolerância de ponto concedida aos funcionários públicos na véspera de Natal representam um investimento – substancialmente superior ao realizado nas JMJ – suportado pelo erário público, pelo que a discussão da aplicação dos impostos que todos pagamos em eventos religiosos é pertinente, mas pueril no sentido em que não é a gestão da coisa pública que se pretende contestar. É apenas o argumento que está mais à mão na tentativa de validar um preconceito ideológico.

Há ainda a questão da pedofilia, um problema sistémico que a igreja católica tem de resolver, a maior vergonha e o maior asco com que qualquer instituição se pode cobrir. Mas deve a igreja inibir-se de realizar as suas atividades? Devem os governos criar uma cerca sanitária à volta da igreja e deixar de colaborar nos seus eventos? E porque não devem as televisões públicas deixar de exibir filmes produzidos pelo Harvey Weinstein ou as rádios públicas deixar de passar músicas do Michael Jackson? Isso fará de todos nós cúmplices?

Aqui chegados, muitos leitores estarão a considerar todos os parágrafos deste texto um exercício de whataboutismo…e é. Aliás, convém mesmo que seja, em nome da coerência. Daqui a uns meses vamos estar a discutir a realização do Mundial do Futebol em Portugal em 2030 e os argumentos em debate vão ser os mesmos: o investimento público, os escândalos que afetam a cúpula da entidade organizadora e o transtorno que o evento vai causar a quem cá anda.

Aí muitos vão mudar de barricada porque, no final do dia, o único argumento que nos assiste é “gosto” ou “não gosto” e por aqui vamos em muitas das discussões que dominam a agenda social nos dias que correm. Enxertam-se argumentos para censurar as vidas com as quais não nos identificamos. Não se pode vender tabaco porque não gosto que fumes, não podes casar porque eu não gosto que cases, não podes comer carne porque não gosto que comas carne, não podes pedir ajuda para morrer porque não gosto que escolhas morrer.

Não precisamos de ser mais católicos para sermos mais tolerantes, nem menos conservadores para sermos mais empáticos.

Voltando às Jornadas, é pena que Almeirim não tenha acolhido mais peregrinos. Santarém que é uma cidade cujo pulso não se sente há vários anos, esteve bastante vibrante durante uma semana de agosto.

Espero que os milhares de pessoas que ali ficaram tenham tido a oportunidade de ir às portas do sol e apreciar a melhor paisagem de Santarém: a vista para Almeirim.

Opinião – João Bastos