No dia 8 deste mês natalício de dezembro, no ano de 1936, fez-se um pouco de História no concelho. Neste nosso tempo encontramo-nos a 88 anos de distância. De Almeirim partiu, nessa data, o 4º Comboio Automóvel de apoio às tropas do general Franco, os Falangistas, em Espanha na Guerra Civil. Este levantamento resultou das ações políticas e confrontos entre a esquerda e a direita espanholas, que resultou no levantamento militar contra os Republicanos da Frente Popular.
Aqui, no nosso país, utilizando os emissores do Rádio Clube Português, o seu Diretor, Jorge Botelho Moniz, organizou um projeto de apoio às tropas franquistas. Estava em curso no país vizinho uma guerra santa. Foram organizados vários procedimentos de apoio, sendo um deles a organização de comboios de viaturas para levar géneros a Espanha, aos franquistas, da célebre Falange.
De Almeirim, a 13 de dezembro desse ano de 1936, partiu o 4º comboio, composto por 9 viaturas, carregadas com géneros alimentícios. Esta ação coincidiu com um tempo de grande carestia de géneros e de trabalho em Almeirim e no país. Os maus anos agrícolas, com geadas e cheias, provocaram violentas crises de trabalho. As gentes do campo não conseguiam qualquer rendimento para o sustento das suas famílias.
Desde, pelo menos, o ano de 1934 que esta crise se mantinha com resultados muito graves. Aqui, a Câmara Municipal e o Administrador do Concelho, procuravam encontrar meios que a minorassem. Consultando os registos municipais e o jornal que se publicava na época – de 1930 a 1936 – o Vale do Tejo, conseguimos perceber a dimensão social e económica desta crise.
Acrescentemos que já existia na então vila uma entidade para apoiar os “pobres”: a Sopa dos Pobres. Esta Associação foi criada no ano de 1928 (aprovada por Alvará do Governador Civil de 13 de janeiro de 1928), tendo por fim “distribuir duas refeições diárias aos indigentes de ambos os sexos, naturais da freguesia de Almeirim ou nela residentes, além de um prazo nunca inferior a 2 anos”.
No dia 22 de abril de 1934, há uma reunião dos lavradores com o administrador do concelho, o Sr. Tenente Hintze Ribeiro. A crise era bastante grave e, temendo levantamentos populares, procuravam uma solução. Nessa reunião, com várias intervenções, creio ser de destacar o que afirmou o Dr. Joaquim Gonçalves: “cuidemos dos homens que estão sem trabalhos, olhemos para a crise angustiosa que atravessam, há lares sem pão, é necessário socorrê-los!”. De seguida apresenta a sua proposta, que era a de pôr à disposição da Câmara, para trabalhos de interesse público, 30 homens a quem pagaria 5$00 por dia. De seguida outros elementos presentes acompanham a sua oferta, tendo a Quinta da Alorna proposto pagar a 10 trabalhadores e outros mais, que não interessa aqui referir.
Estas crises já se vinham avolumando, havendo sucessivas deliberações sobre o tema. No inverno de 1935 e primavera de 1936, as geadas e cheias tiveram um impacto enorme no trabalho. Mais uma vez os trabalhadores rurais ficaram sem trabalho. Em consequência das inundações verificadas, com alagamento dos campos, os alarmes voltaram a soar para a lavoura e autoridades. Desta vez temos o tenente António Antunes Basílio, administrador do concelho, a convocar uma reunião com os lavradores. Foi deliberado formarem uma Caixa de Socorro aos sem trabalho. Para esta Caixa seriam canalizados os fundos que os ditos lavradores subscrevessem. Os trabalhadores requisitavam ao administrador a importância que necessitavam para uma semana, requisitando tantas semanas quantas as em que estivessem sem trabalho provocado pelas inundações. Ficariam com a responsabilidade de pagamento ao administrador, dessas importâncias, quando voltassem a ter trabalho. Isto com a garantia de que de nunca lhes ser descontado mais do que um dia, semanalmente, até completarem o que haviam pedido.
É neste quadro, sumariamente descrito, que se passa o episódio que pretendo referir. O Sr. Aires Henriques, de Pedrógão, contactou-me há uns anos. Ele havia comprado em Lisboa, a um alfarrabista, um livro datilografado com 403 páginas. Era o relato sobre um comboio automóvel, saído de Almeirim para Espanha. O autor era um cidadão de Almeirim, o senhor Alfredo Barros de Brito. Este era funcionário do Grémio dos Produtores de Vinho de Almeirim, para além disso fez parte dos colaboradores do jornal O Vale do Tejo. O livro era a descrição integral do que se passara nessa viagem a Espanha. Mantivemos uma correspondência a propósito do referido relato e o Sr. Aires Henriques prepara a edição do mesmo.
Quando me informou da viagem de Barros de Brito, fiquei surpreendido. É que já ouvira a situação, em criança, em terras para onde os meus pais haviam emigrado. Assim o que tenho em memória é uma história que o meu pai nos contou, a mim e aos meus irmãos, sobre esta ocorrência. O meu pai era natural de Almeirim e casou-se aqui com a minha mãe. Eu nasci em Angola, na praia da Lucira, distrito de Moçâmedes, Namibe. À noite, acontecia os meus pais contarem fases da vida em Portugal e em Almeirim. Numa dessas noites, por várias vezes, surgiu a referência ao que passara nos tempos da Guerra Civil de Espanha, bem como as referências ao que se fazia em Portugal. Numa dessas noites, para mim mágicas de tempos de criança, em terras onde o mar se espraiava nas areias, surgiu a referência à organização de transporte de géneros de Almeirim para as tropas de Franco.
Nessa altura, como referi anteriormente, havia carestia de géneros havendo o racionamento de géneros alimentícios. As pessoas para terem produtos tinham uma senha e iam para as filas de espera. O meu pai era mestre sapateiro e possuía uma oficina e loja, na rua Miguel Bombarda. Um dia apareceram-lhe dois empregados, que eram músicos na Banda Marcial, um deles era o Sr. Rafael Roque, já falecido. Estes informaram que tinham sido convocados para a recepção dos carros que haviam ido a Espanha e, portanto, não viriam trabalhar no dia seguinte. Ele zangou-se porque havia trabalhos para concluir e entregar aos clientes. Os tempos eram difíceis, e ele precisava do pagamento dos trabalhos efetuados. Disse-lhes que era com o dinheiro que recebia que lhes pagava e eles não vinham acabar o que faltava. E ainda mais que iam tocar em festa destinada a receber aqueles que levaram os géneros para as tropas do Franco, enquanto aqui as famílias tinham dificuldades e havia o racionamento. E logo para os falangistas que andavam a matar os republicanos.
No dia seguinte, as pessoas importantes da vila juntaram-se à entrada, na Pontinha, que é a saída para Santarém, para esperarem e vitoriarem os que tinham levado os abastecimentos. Aconteceu então que não havia gente da Banda. Tinham sido informados da hora de reunião e do local mas não apareciam. Enviaram um funcionário da Câmara para os chamar, que era ali que tinham de estar. O mesmo voltou dizendo que não havia nenhum músico na sede da Banda. Não houve música, embora caravana tenha chegado à noite.
Uns dias depois o meu pai foi visitado por um senhor importante da terra, na altura o Tenente-Coronel Batista – foi administrador do concelho, chefe da Polícia e Governador Civil – que era amigo dele. Chamou-o para o Jardim da República e disse-lhe: Então foste dizer aos músicos para não irem à receção? Ele respondeu que não dissera tal coisa, só havia reclamado da falta ao serviço dos empregados que eram músicos. O que aconteceu foi que esses empregados disseram aos outros músicos que iam tocar para quem tinha levado os géneros, que tanta falta faziam, daí todos terem resolvido não comparecer. O tenente-coronel disse ao meu pai que ele não estava já preso porque tinha intercedido a favor dele. Mas que ele era reincidente e que voltaria a fazer o mesmo e, como já havia registado este comportamento, seria imediatamente preso, acrescentando: Vêm buscar-te, e tu desapareces, ninguém mais saberá de ti. O que tinha a fazer era escolher um lugar onde não fosse conhecido e levasse a mulher e filhos – os meus irmãos mais velhos. Daí seguir para Angola, em 1941, onde a minha mãe tinha um tio com uma empresa de pesca.
Já aqui em Almeirim, pretendendo saber mais sobre esta situação vim a saber que, na altura, a Polícia Internacional de Vigilância do Estado, a PVIDE, viera à vila, mas o então Presidente da Câmara, Dr. Torrão Santos, não permitiu que prendessem as pessoas.
Estando para ser publicado o trabalho de Aires Henriques, fico à espera da descrição pormenorizada dos acontecimentos.
Foram 9 as viaturas que saíram para Espanha: Nº1 – de Vasco Andrade, com o letreiro Alvarengas, levando como comandante Luís Margaride e chofer José Silva; nº2 – de Bernardino Gonçalves, com o conde de Carnide e chofer Joaquim Mota; nº3 – de José Júlio Andrade, com o Dr. Alberto Rosa, médico da caravana, Luís Batista e Manuel Alexandre; 4º – de António Marques, com António Marques da Cruz , António Mendonça e chofer Fernando Mendes; 5º – de Andrade & Irmãos, com Afonso Cunhal, José Moita Leonor e chofer Jacinto Ferreira; 6º – de José Rodrigues Santo, com Saul de Almeida e chofer Augusto Nunes; 7º – de António Cardoso, com Nuno Vaissier e Henrique de Margaride e chofer António Cardoso; 8º – da Federação dos Vinicultores do Centro e Sul de Portugal, com Dr. Américo Gonçalves, Alfredo Barros de Brito e motorista António S. Moita; 9º – (de apoio) de Oliveira Lª, de Santarém, com Mário Gonçalves e o mecânico e motorista Herlander dos Santos.
A primeira imagem mostra a concentração junto ao Jardim, onde hoje se encontra o Café Império, à partida; a segunda os participantes do percurso.
Eurico Henriques – Professor e Presidente da Assembleia Municipal de Almeirim