Sofia Ferreira: “Senti que poderia ter a oportunidade de fazer algo útil pela minha freguesia”

Nos tempos de criança, chegou a dizer à mãe que queria ser professora, mas a vida levou-a para o direito. A leituira do livro “O Processo”, de Franz Kafka, terá sido decisivo para a escolha. A também Presidente da Assembleia de Freguesia de Fazendas de Almeirim fala a O ALMEIRINENSE em exclusivo sobre Direito, Fado e, claro, também, as polémicas recentes envolvendo as reuniões e as atas do órgão a que preside. 

De onde vem o gosto pelo Direito? Quando e por influência de quem, pensou em seguir esta área?

O gosto pelo Direito vem desde relativamente cedo. A primeira memória que tenho de ter dito aos meus pais que queria seguir Direito, é de quando estava no sétimo ano da escola (primeiro ano do terceiro ciclo). Não há ninguém na minha família que tenha seguido ou esteja ligado a essa área. Na verdade, na altura, nem conhecia ninguém que trabalhasse nessa área. Acho que a influência principal (pelo menos é essa a memória que tenho) vem de um livro que li por volta dessa altura, com o título “O Processo”, de Franz Kafka, que, muito sinteticamente, retrata a história de um indivíduo que é repentinamente acusado da prática de um crime que não cometeu e que passa por um longo e penoso processo judicial, altamente burocrático, sem que lhe sejam asseguradas as garantias de defesa mais básicas. O livro retrata a situação de tal forma que, quem o lê, sente uma revolta extrema. Acho que foi essa vontade de um dia ter oportunidade de dar o meu contributo para ajudar a equilibrar a balança da justiça que me levou a escolher Direito. Claro que ao longo do curso e, depois, do Mestrado fui contactando com áreas diversas do Direito, além das mais tradicionais, e tenho optado por me especializar em áreas do Direito mais relacionadas com a Economia e a Gestão, porque cheguei à conclusão de que o Direito, atualmente, não vive nem pode viver isolado de outras áreas de conhecimento.

Bem sabemos que está ainda no início de carreira, mas tem gostado?

Comecei a trabalhar aos 22 anos, pelo que, não passou nenhuma vida, mas já lá vão cinco anos. Tenho gostado muito, tenho tido a sorte de trabalhar com pessoas extraordinárias, dos melhores nas suas áreas, com quem tenho aprendido imenso, tendo tido sempre um excelente ambiente de trabalho, o que se revela essencial quando trabalhamos muitas horas. As áreas em que tenho trabalhado são muito dinâmicas, implicando o contacto com diversas empresas em diferentes setores de atividade, pelo que o meu dia-a-dia é muito variável e aprendo coisas novas todos os dias. Gosto muito desse dinamismo.

Quais as áreas de que mais gosta?

Após a licenciatura, tendo gostado muito das disciplinas relacionadas com o direito das sociedades comerciais, quis fazer o mestrado dentro dessa área. No entanto, como acredito que o Direito beneficia da multidisciplinaridade com outras áreas, optei por tirar um mestrado conjunto em Direito e Gestão. Ao longo do estágio profissional, trabalhei nas áreas de fiscal, contencioso, bancário e societário. Depois da agregação à Ordem dos Advogados, fiquei a trabalhar na sociedade de advogados, em que fiz o estágio na área de direito fiscal e, mais recentemente, juntei-me a uma outra sociedade de advogados, também com uma forte componente transacional e estou a trabalhar nas áreas de fusões e aquisições de empresas e mercados financeiros. Portanto, tenho estado sobretudo a trabalhar em áreas do Direito que contactam diretamente com as áreas económico-financeiras.

Que objetivos tem para o futuro próximo, na área profissional? Voltou a estudar porque espera seguir por outra via?

Uma vez que comecei a trabalhar logo depois de terminar a parte letiva do Mestrado, tinha deixado por terminar a minha tese de mestrado. Assim, a certa altura, optei por fazer uma pausa, não só para terminar e defender a minha tese, mas também para ponderar se quereria continuar na advocacia ou se fazia sentido apostar na magistratura. Cheguei a fazer um curso de preparação de entrada no CEJ (onde se formam os juízes), enquanto fazia a minha tese, mas cheguei à conclusão que gostava mesmo da área do meu mestrado e que queria trabalhar nela. Assim, é o que estou a fazer agora e pretendo continuar.

Nunca pensou seguir o ensino, como a sua mãe?

Quando era pequenina cheguei a dizer à minha mãe que queria ser professora, porque adorava ler e escrever. Mas o gosto pelo Direito surgiu logo muito cedo, como disse, e, a partir do momento em que fiquei com essa ideia, já não ponderei enveredar por outra área.

E a participação na vida política começa onde e como? Quais as referências neste meio?

Sempre tive interesse em informar-me sobre a política, em conhecer a sua história, nacional e internacional, porque considero que é um dever cívico estarmos minimamente informados para conseguirmos formar uma opinião acerca dos que nos governam ou podem vir a governar. Ao tomar conhecimento dos ideais dos diversos partidos, tenho vindo a identificar-me mais com os ideais do partido socialista. No entanto, a participação na vida política surgiu apenas no contexto da assembleia de freguesia, porque senti que poderia ter a oportunidade de fazer algo útil pela minha freguesia. Mas não pretendo fazer uma carreira na política, nem nada que se assemelhe a isso.

Quando era mais jovem, ainda chegou a pertencer a juventudes partidárias?

Não, porque nunca tive interesse, nem tenho ainda, em seguir uma carreira política. Gosto de levar uma vida com alguma discrição e sem conflitos e a política nunca me permitiria isso. Essa é uma das razões pelas quais enveredei por uma área do Direito que, apesar de ser bastante stressante pelo seu dinamismo, é tipicamente não litigiosa. No entanto, quando o convite para a assembleia de freguesia surgiu, optei por aceitar porque pensei que poderia ser uma forma de dar algum contributo para a minha terra.

E o convite para liderar a Assembleia de Freguesia de Fazendas, como surgiu? O que pensou quando lhe foi feito o convite? Tem gostado?

O convite surgiu há seis anos, quando tinha 21 anos, e tinha precisamente acabado a licenciatura. Na altura, ponderei bem antes de aceitar, porque estava receosa de que as pessoas não me respeitassem ou levassem a sério, devido à minha idade. No entanto, pus esses medos de lado e abracei o desafio como tenho abraçado os restantes: fazer o meu melhor, sempre com humildade e respeito pelos outros. E, apesar de, no início, tudo ter sido novidade, o primeiro mandato correu bastante bem, tendo existido sempre ordem na assembleia e nunca tendo sentido que os deputados da assembleia me desrespeitassem por ser mais nova ou menos experiente. O segundo mandato já não tem sido tanto assim, mas darei o meu melhor para que isso possa vir a melhorar. Como disse, não sou política nem tenho aspirações a ser. Apenas quero o bem da minha terra e é somente isso que me move e quem me conhece sabe bem isso. 

“Considero-me democrática”

Têm existido reuniões muito agitadas. Porquê? Tem sido muito exigente o seu papel?

Calculo que essa pergunta venha no seguimento das acusações, umas subentendidas, outras bem diretas, que me são dirigidas na notícia que saiu no periódico anterior deste Jornal, sendo que, desde já, lamento que não tenha tido oportunidade de esclarecer as coisas, mas vamos sempre a tempo. Até porque, quem lê a notícia, sem mais, pode ficar com uma ideia diferente daquilo que é a realidade. 

Quem me conhece, sabe que não alimento guerras políticas sem fundamento e sem nenhuma utilidade pública, como a que se pretende com a notícia, mas posso explicar porque é que já tive de advertir alguns membros da assembleia para se conterem nas diversas palavras ofensivas que têm tido para com os membros do executivo, os outros deputados e para comigo. O regimento prevê que o presidente da mesa da assembleia deverá advertir o orador quando este se afaste do assunto em discussão ou quando as suas palavras sejam ofensivas, podendo retirar-lhe a palavra se persistir na sua atitude (artigo 26.º, n.º 7). 

Uma das competências do presidente da mesa é precisamente assegurar a ordem na assembleia, e, nas últimas reuniões, nem sempre tem sido fácil fazê-lo. A gestão das pessoas tem sido, sem dúvida, mais exigente. Ainda assim, nunca deixei de dar a palavra a todos os deputados que a solicitaram e nunca os deputados deixaram de conseguir expor as suas ideias, opiniões e questões. Apenas peço sempre que o façam com moderação, educação e respeito pela assembleia e pelos presentes. A assembleia é um local solene onde se devem discutir os temas que nos interessam enquanto comunidade. Na taberna ou no café e nos almoços com amigos, cada um usa a linguagem que entende. Na assembleia, devemos primar por não ofender os outros.

Recentemente, foi notícia por ter dito que era da sua responsabilidade o crivo do que se passava na Assembleia e o que ia para a ata. Quer explicar o que quis dizer?

Aquilo que eu quis dizer está explicado mais à frente na ata, no entanto, convenientemente ou não, é ocultado por quem quer distorcer o que se passou. As palavras citadas foram retiradas completamente fora de contexto para dar a entender ao leitor que eu coloco nas atas o que me apetece. Aliás, o problema do populismo é esse mesmo: descontextualizar para se passar o que nos interessa. 

Explicando então o tema das atas: aquilo que eu quero dizer com a frase retirada da ata, sem qualquer contexto, é que as atas devem ser um resumo daquilo que se passa na Assembleia, sendo que das atas constará “o que é relevante”, frase esta que também consta da ata, mas essa já não vem na notícia. E se assim é, não é porque eu digo, mas sim porque é o que a lei dita. Diz o artigo 57.º da lei das autarquias locais que “de cada sessão ou reunião é lavrada ata, a qual contém um resumo do que de essencial nela se tiver passado”.

A própria lei assim prevê porque não é possível constar em ata tudo aquilo que é dito, ao pormenor, palavra por palavra, numa assembleia que dura várias horas. Pelo que compete a quem redige a ata e à Mesa da Assembleia fazer o resumo daquilo que tem relevo para a assembleia, sem prejuízo de quem entender na reunião seguinte dizer de sua justiça sobre a mesma, durante a discussão e votação da ata, ficando a constar da ata dessa reunião a discussão que é tida antes da votação da ata da assembleia anterior. Este resumo é feito para as intervenções dos deputados, para as minhas, para os membros do executivo e do público. Curiosamente, ou talvez não, sobre as intervenções do público, quem me acusa de não colocar tudo nas atas, nada diz sobre isso. 

Obviamente, que nas atas devem estar os assuntos apreciados, as decisões e deliberações tomadas, o resultado das votações, o resumo das intervenções e o sentido que cada um lhe quiser dar. Nada disto está em causa, nem nunca esteve. Se dúvidas restarem, convido os fregueses a assistirem às assembleias, para que possam tirar as suas próprias conclusões. 

E quanto às gravações: O regimento fala da obrigatoriedade das gravações… 

Uma vez mais, isso está explicado na mesma ata, precisamente na minha intervenção seguinte, mas, uma vez mais, essa parte já não está na notícia. Conforme eu expliquei na assembleia, o que eu quis dizer é que a lei das autarquias locais não obriga à gravação das assembleias, no entanto, a nossa assembleia optou, no seu regimento, por prever essa obrigatoriedade, com o que concordo plenamente, uma vez que facilita, em muito, a redação da ata.

Sinceramente, tenho algumas dificuldades em entender esta forma de fazer política, em que não existe pudor em distorcer as palavras e a imagem dos outros, sem qualquer preocupação em transmitir a verdade. Considero que política deveria ser uma atividade feita com elevação, nos atos e na linguagem. Infelizmente, sei que a política no nosso país tem vivido muito desta distorção – em vez de se lutar para construir, luta-se para destruir.

Considera-se democrática?

Claro que me considero democrática. Como já referi, não sou política, nem tenho aspirações a ser, mas optei por aceitar este desafio de ser presidente da assembleia da freguesia de Fazendas de Almeirim porque queria fazer algo positivo pela minha terra, e tenho dado o meu melhor para o cumprir com dignidade e rigor, ser justa e dar voz a todos os membros da assembleia, para que intervenham sobre os assuntos da nossa freguesia. 

Considero também que a democracia acarreta diversos direitos, tais como a liberdade de expressão, tão aclamada na já mencionada notícia, mas também acarreta deveres, nomeadamente o dever de respeito pelo outro. Como dita a velha máxima, a nossa liberdade termina onde começa a liberdade do outro, porque vivemos em comunidade. Portanto, há que ter em mente que a liberdade de expressão nos permite expressarmos as nossas ideias de forma livre e independente, mas não pode ser uma desculpa para ofendermos, desrespeitarmos ou injuriarmos os outros, porque os direitos que vimos reconhecidos com a democracia são direitos de e para todos, e não só de alguns. 

Como analisa o trabalho do atual presidente da Junta?

No meu entender, alguém que está num cargo de direção, seja de uma freguesia, de um país ou até de uma empresa, deve ser alguém isento, honesto, ponderado, que se preocupe com o bem-estar das pessoas e que tenha interesse em ouvi-las. E considero que o atual Presidente da Junta reúne essas características. Não é um homem de muitas palavras, mas é de ações, e é com ações que as pessoas vivem, na verdade. Além disso, é uma pessoa calma e ponderada, que tem optado por não entrar em conflitos que nada acrescentam à nossa freguesia. Por vezes mais simples é responder às pessoas na mesma moeda. É a solução mais simples no momento, mas a que traz mais problemas no futuro. Conflito gera conflito e nada traz de bom. E quando perdemos tempo e energia com conflitos falta-nos foco e tempo para resolver os problemas das pessoas. E é para resolver os problemas das pessoas que os políticos são eleitos.

E o papel que tem sido desempenhado pela oposição?

Conforme já referi, não alimento guerras políticas e por isso abstenho-me de grandes comentários em relação a isso. As ações ficam com cada um. Fico-me apenas por dizer, relativamente ao que é dito na notícia que saiu no periódico anterior deste Jornal, sobre alguns deputados da oposição terem faltado à última reunião do ano por desgostarem da minha pessoa, que lamento que assim tenha sido, uma vez que é uma das assembleias mais importantes do ano – a assembleia em que é discutido e votado o orçamento do próximo ano – e acredito que os fregueses que votaram nos senhores deputados gostariam de se ter visto representados nessa assembleia. Na minha opinião, isso deveria ser mais importante do que estas guerras políticas. Felizmente há pessoas que, não sendo do partido da maioria, são pessoas que contribuem para o bem da freguesia. Não temos de estar todos de acordo, mas a discussão com elevação só traz benefícios, a todos. Para a história ficam as obras, as iniciativas e o que se faz. O resto perde-se na espuma dos tempos.

Foto: Reinaldo Rodrigues/Global Imagens

Sofia, muitos de nós também a conhecemos pela música. Ainda canta, ou entre a política e o direito não há tempo para mais? Ensaia e canta para se libertar desta pressão?

Nunca deixei de cantar, apesar de não divulgar onde vou e onde estou, nas redes sociais, porque há algum tempo atrás optei por passar a utilizar o mínimo possível as redes sociais. Apercebi-me que as pessoas passam mais tempo na realidade virtual do que na realidade física e o “desligar” das redes sociais é uma forma de lutar contra isso e passar a viver mais o momento, com as pessoas que nos rodeiam. Canto com frequência numa casa de fados, em Alfama, quando o trabalho me permite, mas sempre, pelo menos, uma vez por semana. Claro que é um escape ao stress do dia-a-dia, mas é sobretudo algo que sempre fez parte da minha vida e que me realiza, me faz feliz.

Porque não seguiu pela área artística? Gostava de ter seguido por essa via?

Gosto muito de cantar, mas sempre tive os pés bem assentes na terra. O meio artístico é instável – os tempos difíceis que os artistas viveram com a Covid-19 demonstram isso mesmo. Pelo que, apesar de nunca ter deixado de cantar, sempre encarei a música como algo que vou fazendo em paralelo à minha atividade principal. Além disso, o Direito sempre foi uma paixão para mim, mesmo antes da faculdade, pelo que não poderia deixar de seguir essa área.

Qual a referência no meio musical?

A minha referência de sempre é, sem dúvida, a grande Amália Rodrigues. No entanto, dessa geração, vou também beber bastante à Fernanda Maria e à Maria Teresa de Noronha. No panorama atual, as minhas fadistas de eleição são a Carminho e a Sara Correia.

Alguma participação especial nesta área?

Um dos eventos que em participei mais recentemente e que me deu muita satisfação, não só por juntar a área do Direito com a da Música, mas também por ter um propósito nobre, foi o Rock’n’Law. O Rock’n’Law é uma iniciativa sem fins lucrativos que visa angariar fundos para apoiar projetos de relevante cariz social em Portugal. É um evento promovido por um conjunto de Sociedades de Advogados que, em benefício de projetos de solidariedade social, criaram as suas próprias bandas de música e, em conjunto, atuam em favor de uma causa, que vai mudando todos os anos e que é escolhida através da realização de um concurso.