“Serão inevitáveis todos os acidentes na infância?”, por Teresa Gil Martins

Um acidente pode definir-se como uma lesão que ocorre quando um corpo é submetido a uma força cuja energia supera o limite da sua tolerância fisiológica. A energia em questão pode ser mecânica, química, térmica ou radiação. A maioria dos acidentes são previsíveis e, por isso, evitáveis. Por esse motivo, o National Institute for Health and Care Excellence (NICE) no Reino Unido e a Organização Mundial de Saúde (OMS) preferem denominá-los de “lesões não intencionais”, distinguindo-as dos verdadeiros acidentes, que são totalmente inesperados. 

Acidentes rodoviários, afogamentos, queimaduras, quedas e intoxicações são as principais causas de lesões em crianças. Constituem uma séria ameaça à vida, porque correspondem à maior causa de morte de crianças e jovens em Portugal, à semelhança do que acontece nos outros países da União Europeia. São ainda responsáveis por inúmeros internamentos, atendimentos em serviços de saúde e lesões não fatais com sequelas mais ou menos graves e/ou duradouras. Para além disso, têm profundo impacto nas famílias afetadas e na comunidade envolvente, com custos diversos e imensuráveis para todos. 

As idades limites da vida (menos de 14 anos e mais de 65 anos) revestem-se de particularidades próprias, que aumentam a suscetibilidade a estas lesões. Efetivamente, a criança não é um adulto em miniatura. Sendo mais baixas do que os adultos, as crianças têm mais dificuldade em ver e em ser vistas; não têm noção de perigo e são dotadas de uma curiosidade inata que as incita a descobrir o mundo que as rodeia. Aprendem muito rápido, escalando capacidades motoras a uma velocidade vertiginosa. Apesar destas vulnerabilidades, o intuito não é vedar-lhes o acesso ao meio envolvente enclausurando-as numa redoma, mas proporcionar-lhes um ambiente seguro. Para isso, pais, educadores, condutores, políticos, arquitetos, investigadores, treinadores de modalidades desportivas e vendedores devem trabalhar em sintonia e complementaridade, preparando ambientes onde as crianças possam descobrir, crescer, aprender, desenvolver-se e adquirir autonomia e literacia motora de uma forma livre e descontraída. 

Os acidentes rodoviários são a principal causa de morte em Portugal. Em 2015, mais de 20 crianças/jovens por semana morreram ou ficaram feridas na sequência de atropelamentos. A maioria delas tinha idade compreendida entre os 10 e os 14 anos e deslocava-se em zonas residenciais, no percurso casa-escola. A segurança das nossas crianças depende do civismo da condução de todos nós, mediante a adoção de comportamentos que facilitem a visibilidade na via pública, bem como a paragem do veículo em tempo útil, sempre que necessário. É fundamental que não paremos os veículos em segunda fila, nem em cima ou próximo das passadeiras, que não circulemos a mais de 30 km/h junto de escolas, zonas residenciais e parques infantis, e que antes de colocarmos o carro em andamento verifiquemos se não existem crianças por perto. Dentro do automóvel, as crianças devem ser transportadas em cadeiras de contenção promulgadas, sem casacos grossos vestidos (que interferem com a fixação adequada do arnês), viradas de costas para a estrada pelo menos até aos 3 anos de idade e guiadas por um condutor responsável. Mesmo quando avaliadas nestas condições, a Associação para a Promoção da Segurança Infantil (APSI) detetou que 31% das cadeiras estavam mal colocadas, refletindo uma falsa noção de segurança.

A segunda causa de morte é por afogamento, que mata de uma forma rápida e silenciosa. São suficientes 2,5 cm de altura de água junto à face, porque as crianças pequenas não têm a força necessária no pescoço para levantar a cabeça da água quando esta lhes tapa o nariz e a boca, impedindo-as de chorar e de respirar. Entre 2002 e 2020 perderam a vida por este motivo em Portugal um total de 274 crianças/jovens. Barreiras físicas seguras (com 1,10 metro de altura) devem vedar todos os reservatórios de água. O tempo quente aumenta estes riscos e os dias de festa e ambientes de férias são particularmente propícios à distração dos adultos, pelo que um segundo pode tornar-se fatal e irreversível. 

Calcula-se que cerca de 80% dos acidentes que acontecem em casa nos primeiros anos de vida poderiam ter sido evitados se os pais/cuidadores tivessem consciência do que as crianças são capazes de fazer nas diferentes idades. A monitorização periódica do ambiente envolvente permite detetar perigos previamente negligenciados. Para isso é recomendável que os adultos percorram as casas “de gatas”, para avaliar e corrigir o nível que se encontra ao alcance das crianças que o frequentam. Por outro lado, conhecendo as etapas do desenvolvimento, os pais/cuidadores podem antecipar medidas capazes de prevenir inúmeras lesões. Aos 4 meses a criança começa a abrir as mãos o que lhes permite ter acesso a objetos inapropriados, provocando queimaduras ou engasgamentos. A partir dos 6 meses começam súbita e progressivamente a sentar-se, rebolar-se, arrastar-se, aguentar-se em pé e andar, para depois escalarem tudo. Com estas novas capacidades o risco de quedas aumenta, pelo que há necessidade de proteger escadas, janelas e portas, bem como a cama onde dormem. Os produtos químicos como: medicamentos, detergentes, lixívia, etc. devem ser retirados dos níveis facilmente alcançáveis e colocados em locais altos e inacessíveis. Os fechos de segurança não são suficientemente seguros, porque podemos esquecer-nos de os colocar.

A partir do ano de idade a autonomia motora aumenta, as crianças não têm noção do perigo e são profundamente curiosas, tornando-se verdadeiros cientistas na descoberta do mundo que as rodeia. O risco de intoxicações, quedas, queimaduras e afogamento aumenta nestas idades. A partir dos 5 anos aprendem atividades que podem provocar lesões sérias. A solução não é impedi-los de as realizarem, mas aprenderem a fazê-las de forma segura, por exemplo: andar de bicicleta com capacete e não circular em vias rodoviárias, aprender a atravessar estradas, entre outros. Aos 6 anos, tornam-se mais independentes e querem provar a sua autonomia. Contudo, ainda não têm a noção real das distâncias, bem como da velocidade a que se deslocam os veículos. Aos 8 anos, olham mais para si próprias e para os amigos e tornam-se mais audazes, pelo que se torna imprescindível aprender e reforçar as regras de segurança. Na adolescência ocorre a transição do meio familiar para o dos amigos, o que promove a autonomia indispensável à vida adulta. A necessidade de se sentirem integrados no grupo facilita a adoção de comportamentos menos seguros a que os cuidadores devem estar atentos. Autonomia e responsabilidade devem cursar em sintonia, com o modelo educativo de parentalidade persuasiva a desempenhar um papel crucial nesta fase da vida. 

Cuidados de segurança coadunam-se perfeitamente com o incentivo da prática desportiva. Por outro lado, as crianças devem trepar, saltar e brincar em liberdade e com criatividade. Arranhões e nódoas negras resultantes de pequenos traumatismos da atividade lúdica não são prejudiciais para a saúde das crianças. Para evitar incidentes graves, o material desportivo deveria ser vendido com os respetivos dispositivos de segurança, por exemplo bicicletas, skates e equipamento desportivo de hóquei ou râguebi deveriam ser indissociáveis dos respetivos capacetes e restante material de proteção. O seu uso deveria ser um hábito incentivado por familiares e treinadores, ou eventualmente obrigatório. Em crianças mais pequenas, o uso de aranhas não apresenta quaisquer vantagens, aumenta o risco de quedas graves, pelo que não são recomendadas. No que diz respeito às intoxicações, a ingestão de lixívias e detergentes é altamente corrosiva para as vias digestivas, pelo que o vómito não é uma atitude recomendada. Antes de qualquer procedimento deve manter-se a calma e, sem precipitações, contactar o Centro de Informação Antivenenos (CIAV): 800 250 250.

Em Portugal, muitas crianças sobreviventes devem a sua vida ao trabalho que a APSI tem vindo a promover desde a sua criação em 1992. O empenho com que estes profissionais trabalham merece todo o nosso apreço e um louvável tributo. A sensibilização da comunidade, mudança de políticas nacionais e vigilância pelas entidades policiais mudaram drasticamente o nosso mundo, embora ainda exista um longo percurso a percorrer. O site da APSI (www.apsi.org.pt), para além de conter informação útil, disponibiliza alguns serviços personalizados online que permitem avaliar a segurança individual da casa e das condições de transporte, enquanto aumentam os recursos económicos indispensáveis à manutenção da sua atividade em prol da segurança das nossas crianças. O trabalho em equipa de cuidadores e profissionais é indispensável ao sucesso desejável e depende do contributo individual de cada um de nós, sem exceção.

Teresa Gil Martins – Médica Pediatra

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