“Um Natal debaixo da ponte do Vale Peixe…”, por Augusto Gil

 Cedo me apercebi que afinal quem mandava lá em casa era a minha mãe, uma mulher corajosa, teimosa e decidida sem saber uma letra dum tamanho de um boi e dizia: “Se Deus quisesse, quando nasceu já podia vir a saber tudo e se não sabia, Ele lá entendeu porque não lhe deu Instrução”.

Ela era de um feitio do catano que quase até ao final dos seus dias moeu as nossas cabeças de ruindade lá em casa… talvez o velho provérbio se apoderou dela “Filha és, mãe serás”. A minha avó materna (e só ao fim destes anos todos é que venho a saber mais alguma coisa cuja descendência não me importa descrever e se calhar até para mim convém) era do mesmo tipo.

O primeiro marido (dizem), mandou-o para as Caçadas Eternas conforme os Indios já diziam nessa altura, o segundo despachou-o para Espanha para a Guerra Civil, por ter mau feitio e acusou-o de maus tratos, “tudo mentira”, o terceiro, fez-lhe tanta coisa que o Homem morreu de ataque” cardíago”, como diziam os antigos. Quis Deus dar ao meu 2.º filho o seu nome… Diogo, uma paz d`alma como já entenderam que nunca o conheci.

Ainda hoje me perguntam os segredos tanto do meu Pai, meu e do meu irmão, de termos um feitio sempre bem-disposto no dia-a-dia apesar daquelas situações. Infelizmente o segredo poderá ser simples como “Os” da União Soviética, não passava nada da nossa vida depois da Cortina de Ferro lá de casa, claro ficava tudo em saco super confidencial. Quantas vezes viemos a “toque de Caixa” para a rua, para não ouvir aquela Santa… Mas também tinha coisas boas felizmente, pelo menos nesta altura do Natal.

Recordo um Natal desses, devia ter aí uns 8/9 anos, de rente à noitinha baterem ao portão lá de casa e eu ir abri-lo. Uma senhora relativamente nova com uma criança ao colo e um outro mais velhito a segurar as rédeas de um burro um pouco esquelético com uma carrocita. Andava a pedir esmola. Nessa altura a miséria era mais descrita e advinhava-se logo à primeira vista quem era ou não pobre. A minha mãe abeirou-se da dita senhora que lhe pediu qualquer coisa de comer para os filhos, porque só tinham comido uma côdea de pão nesse dia e estavam com fome, que era verdade porque até podiam comer ali mesmo para o provar. Que andavam de maltezaria e o marido andava a montar ali perto debaixo da ponte do Vale Peixe, uma tendita para passarem por cá o Natal. A minha mãe dispôs-se logo a ir buscar sopa com conduto e ali lhes deu à porta. Eu ali estava admirado como aquela gente comia com tanto prazer. Quando acabaram de comer a Senhora agradeceu e pediu mais umas coisas se fosse possível, alguma roupa velha nossa, alguns briquedos que não quisesse e sabão, porque era para lavar a roupa e eles também porque não queriam andar sujos.

Bem, a minha mãe olhou para eles e comentou: – “Tava a decunfiar de voceses, mas essa de me pedir sabão… Deus me pordoe, partiu-me o mê curaçã… Esperem aí qu´ê já venho”. Atravessou a estrada e foi à loja do Jaquim Correia que era mesmo em frente buscar um pequeno avio de mercearia e lá lhes deu. Agradeceram e lá foram estrada fora…

Não houve mais comentários nem conversas nesse resto de dia. No outro dia a minha mãe pediu-me para ir lá de bicicleta “alcervar” se a aquela gente se encontrava lá debaixo da Ponte do Vale Peixe como tinham dito. Lá fui e de facto verifiquei que se encontravam por lá. Uma tendita e um oleado mal “enjorcado” a fazer de revessa e uma corda de roupa estendida a secar, uma fogueira onde caldeiravam qualquer coisa e os putos a brincarem com os meus antigos brinquedos junto ao riacho. Voltei para casa e confirmei aquilo tudo. Pelos olhos da minha mãe vi que ficou contente. Conclusão, esse dia era 24 de Dezembro. À tarde, arranjou uma cesta de vime com tanta coisa para comer e lá me mandou levar àquela família. Quando lá cheguei e entreguei aquilo, ficámos todos mudos a olhar uns para os outros. Não tive mais “tramanhos” para ver tanto o Pai como a Mãe, a chorarem. Quando cheguei a casa, contei tudo aquilo à minha mãe que me disse logo: – “S´aqueles cornes me tivessem mintido, levavam uma praga tã grande, q´até ‘escaganhiçavam-se’ todos, o resto da vida… vá lá, são séiros e tamém asseados, era o que mais me faltava…”.

A ida para Escola em 1959 com os meus 6/7 anos, eu e os demais do meu tempo, tenho a certeza e sem televisão em casa e a pouca informação tanto da parte dos Pais e como tudo desse tempo, a história do Nascimento do Menino Jesus no dia 25 de Dezembro, as prendas no Sapatinho, o fazer o Presépio, onde lá iamos roubar um pinheiro e trazer musgo, umas piteiras, e ir à Rosa Quinquelheira lá na Praça comprar em barro aquelas imagens para compor o Presépio era uma vez por ano, um Maná e uma alegria. Naquele corredor onde o meu Pai colocava o carro como garagem, ao fundo uma arca de madeira tão centenária com uma altura de cerca de 90 centímetros e com um 1,60m de comprimento, era ali que o dito era feito em cima e por baixo eram colocados jornais para que a humidade do musgo fosse absorvida visto os sacos de plástico ainda não existirem. O tirar um espelho bem velho onde uma garrafa de licor e 6 copos se encontrava como decoração numa bandeja na sala de jantar era colocado também naquele cenário a imitar um lago onde com uma ponte cinzenta era colocada em cima, uns patos e as famosas lavadeiras que por ali eram representadas no antigamente nas margens, eram ali colocados.

As estradas feitas de areias do Tejo tiradas de alguma obra ali bem perto de casa onde íamos buscar, era sobreposta com o caminhar daquelas imagens tais como o do Pastor com o seu borrego às costas e o cão e no meio do musgo muitos carneiros eram ali espalhados. Uns bocados de tijolos ou pedras cobertas com musgo os tapavam e lá em cima eram colocados os Moinhos onde também a imagem do moleiro e do burro era ali colocado a descer, como que a dizer que ía levar ao Menino Jesus a farinha para fazer o Pão. Lá ao fundo do outro lado tinha que existir uma torre de um Castelo e por aqueles intervalos nos espaços verdes lá ìamos colocando mais carneiros ou cabras. O lugar onde mais nos dava gozo compor era a casinha onde colocávamos o Menino Jesus na cama de palha feita pelos nossos avós e até a própria decoração onde de um lado se encontrava o burro e do outro lado a vaquinha. À frente o S. José e do outro lado a Nª. Senhora, era colocada e recolocada de uma maneira ou de outra sempre com as opiniões dos mais velhos… – “Não é aí, é do outro lado. Põe a vaca mais p`rá frente. O burro é mais p´ró lado… olha esse carneiro… mete mais á frente, tira daí os Reis Magos porque ainda não chegaram, porque só lá para o dia de ‘Rêzes’ é que cá chegam… e põe o Anjo pendurado por cima da casinha e a Estrela é mesmo lá em cima”. Bem, disto era uma constante durante aqueles minutos. 

Crónica, por Augusto Gil